Poética Urbana: A estética singular de José Maria Frutuoso
O artista autodidata se destaca no acervo do Museu de Arte de Londrina com suas telas cheias de cor, narrativas e sonhos
Quem caminha pela Rua Pádua, no Jardim Piza, zona sul de Londrina, pode notar que uma das casas se destaca na paisagem urbana. A residência se sobressai pelo gramado bem aparado de seu jardim, por seu espaço confortável e por uma grande pintura retratando uma onça que parece saltar da parede, emoldurada por folhas de café. É aqui que mora José Maria Frutuoso, artista plástico e visual que fez da arte seu lar.
Vivendo em meio a centenas de telas e milhares de desenhos, Frutuoso é um artista conhecido na cena londrinense, principalmente por seus trabalhos realizados nos anos 70 e 80, com seu estilo inconfundível, policromático e expressionista. O pintor é uma das personalidades que integram a série Biografias Audiovisuais, produzida pelo Museu de Arte de Londrina e Secretaria Municipal de Cultura (SMC). A iniciativa é composta por entrevistas em vídeo com importantes artistas da cidade, cujos trabalhos estão no acervo do museu.
Trajetória – A paixão pelo desenho e arte surgiu na vida de Frutuoso ainda na infância. Na escola, o jovem se encantava com as aulas de história da arte, e observava atentamente os colegas que desenhavam figuras e rostos. “Nos anos 70 e 80, eu costumava desenhar pessoas na rua, ou reproduzir retratos de artistas como Elvis, até que eu comecei a criar meus próprios trabalhos”, relembra.
No início da década de 1980, o jovem de imenso potencial conheceu Agenor Evangelista, artista que já se destacava na cena londrinense. E, por sua vez, foi apresentado por Evangelista a Paulo Menten, gravurista paulistano radicado em Londrina que teria grande influência em seu trabalho. “Mostrei meus trabalhos para o Paulo Menten. Pelas observações que ele fez, eu entendi melhor o caminho que eu devia seguir. Eu desenhava de tudo praticamente, e minhas obras incluem muitos desenhos até hoje”, conta.
Na época, Menten afirmou que o trabalho de Frutuoso pendia para o cubismo. “Como eu não tinha muita informação sobre arte, quando o Paulo fez as apresentações das minhas primeiras exposições, disse que minhas obras lembravam o trabalho de Fernand Léger e Jacques Villon, pintores que eu nem sabia que existiam. Só depois que fui aprender sobre eles, principalmente Léger, e pensei: ‘Nossa, ele me copiava antes de eu pintar”.
Frutuoso frisa que sempre foi um artista autodidata. “Naquele período, a gente não tinha acesso à informação, era muito difícil. O conhecimento era conseguido só através de livros e de pesquisas, e eu quase não tinha tempo, já que só podia usar os horários da folga do trabalho”.
Mesmo com as dificuldades, ele seguiu produzindo, embalado por uma forte vontade de criar. “Eu terminava um trabalho já pensando no outro”, sublinha.
A vida nas telas sempre teve que coexistir com a vida fora delas. Durante toda a sua vida, além de artista, Frutuoso se dedicou a inúmeras profissões. “É mais fácil falar do que eu não fiz, já que já fui um pouco de tudo”, ri. “Já trabalhei em construção, consultório odontológico, clínica de fisioterapia, empresa de produtos importados, lojas, serviço de segurança. Meu último emprego foi na área de móveis planejados”.
Na época de sua primeira exposição, realizada em 1983 na Associação Comercial e Industrial de Londrina (Acil), Frutuoso vivia uma rotina intensa, sempre focada na carreira de pintor e em suas outras ocupações. “Eu tinha pouco tempo, tanto de exposição quanto de produção. Eu pintava até as cinco horas da manhã, dormia até as seis e depois ia trabalhar. No trabalho, ficava pensando na continuidade daquela trajetória de artista, em como eu ia fazer, e de alguma forma eu consegui”.
Arte que transforma – Uma explosão de cores, figuras com olhares penetrantes, traços que parecem saídos de um sonho. Essas são algumas das características dos trabalhos de Frutuoso. “Se você observar meu trabalho, são imagens do cotidiano com uma roupagem diferente”, explica. “Tem alguns que são mais surreais. Inicio com uma figura simples; as pessoas podem ver que começo a contar uma história através da obra. Eu gosto que as pessoas descubram, analisem o trabalho”.
Para o pintor, a composição das obras é muito importante e, por isso, ele faz questão de complementá-las com diversos elementos, às vezes inspirados em música e poesia. “Já aconteceu de eu estar ouvindo uma música, pegar uma frase e acrescentar à pintura. Tudo vira um tema”, realça.
A inspiração artística de Frutuoso está em qualquer lugar: Famosos, personalidades, desconhecidos na rua. “Quando eu comecei, saí da fase de desenhar artistas e passei a desenhar trabalhadores rurais. Naquela época, se falava muito da questão dos boias-frias. Por muito tempo, desenhei esses trabalhadores e indígenas também”.
Não só o conteúdo das telas, mas também os materiais de trabalho revelam a história de Frutuoso. Como autodidata, ele aprendeu a trabalhar com tinta para tecidos, além de ter uma predileção pelo nanquim. “Trabalhei um período com guache, mas não me acostumei. Como eu gostava de cores fortes, preferia o nanquim e a tinta de tecido. Hoje, eu já trabalho com a acrílica, uma tinta mais fácil de se manusear e com mais opções de cores”.
A obra “Abaixo da Linha Vermelha”, uma das quatro telas de sua autoria que compõem o acervo do Museu de Arte de Londrina desde 2002, é um exemplo de uma produção feita com esses materiais.
“No início da minha trajetória, eu ia comprar material, via todas aquelas cores e ficava imaginando quais eu ia comprar. Eu fazia umas coisas loucas; Paulo Menten falava que eu ‘sujava’ bem um quadro, já que eu usava bastante preto, verde-limão, lilás, laranja. Quando eu ia expor, tinha muita dificuldade para compor. Me falavam que eu tinha que expor sozinho, pois as obras acabavam por ofuscar outros trabalhos de outros estilos, com menos cores. Meu estilo, ao mesmo tempo que provocativo, gerava incômodo, que era o que eu queria. Sou assim até hoje”, pontua.
Representação do todo – Frutuoso sempre foi uma presença negra marcante no cenário artístico londrinense. “Quando eu comecei a expor, tinha só mais dois artistas negros na cena”, diz.
A partir de 1986, o artista participou de dezenas de edições da Mostra Afro-Brasileira Palmares, promovida pelo Movimento de Estudos da Cultura Afro-Brasileira (Mecab), sendo premiado em pelo menos três ocasiões.
Segundo Frutuoso, ele costuma fugir do estereótipo que o público tem de um artista negro. “Eu sempre fugi um pouco daquilo que as pessoas esperavam; eu era um negro que não ouvia samba. Eu comecei a tocar violão porque gostava de Bach”, frisou.
Para ele, o artista tem que ter uma visão do todo. “As pessoas esperavam que eu fosse pintar o candomblé. Eu pinto uma figura que representa o todo, ou seja, não necessariamente uma faceta única da realidade. É claro, eu sou o artista e também sou negro, mas meu trabalho é uma representação geral”.
Conforme Frutuoso, o cenário artístico não é diferente de outras esferas sociais. De acordo com ele, pessoas negras que afirmam que nunca tiveram embates por questões raciais não falam a verdade.
“Eu não necessariamente preciso que algo aconteça diretamente comigo para saber que isso existe. No campo das artes, acontecem muitas coisas nas entrelinhas, mas sempre procurei fazer meu trabalho, expressar minha visão, pintar o que eu quero pintar”, afirma. “Acho que, com toda modéstia, a obra não é maior que o autor. O negro sou eu, minha obra vem depois de mim. A minha vida, o que eu faço, é o que vai representar tudo”, conclui.
Texto: Maria Dalben, sob supervisão dos jornalistas do Núcleo de Comunicação da Prefeitura de Londrina.