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Centro de Referência de Atendimento à Mulher: Londrina no combate à violência doméstica

Há mais de 30 anos, o CAM oferece um ambiente seguro e acolhedor às vítimas de violência contra a mulher

Em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte de seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveros.

Primeiro, ele atirou em suas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. De acordo com Viveros, o ato foi consequência de uma tentativa de assalto, versão posteriormente desmentida pela perícia. Quatro meses depois, quando ela voltou para casa, ele a manteve em cárcere privado por 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho. Em 1998, após tentativas frustradas de obter justiça, Maria da Penha levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Só em 2001, 18 anos após o atentado, o caso teve um desfecho, com o Brasil sendo condenado por negligência, omissão e tolerância à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras.

Este é o caso mais famoso de violência doméstica do país, sendo inclusive responsável por nomear a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Infelizmente, no entanto, este está longe de ser o último caso registrado de violência contra a mulher.

Apenas no primeiro semestre de 2024, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CAM) de Londrina atendeu 2.944 pessoas, entre novos casos e mulheres que já estavam sendo acompanhadas. São muitos atendimentos, mas ainda longe de contemplar todas as vítimas de violência doméstica que existem na cidade.

O Centro iniciou suas atividades em 1993, antes mesmo da existência da Lei Maria da Penha, sendo um dos primeiros de todo o Brasil. “Londrina tem uma história de vanguarda na política de enfrentamento à violência contra a mulher. A primeira Delegacia da Mulher foi em São Paulo, e a segunda foi aqui”, apontou a gerente do CAM, Fernanda de Mello Nogueira. Ainda assim, muitos londrinenses não conhecem o espaço, acreditando ser um serviço recente na cidade.

Foto: CAM / divulgação

Pertencente à Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres (SMPM), o órgão atende a londrinenses maiores de 18 anos que estejam em situação de violência doméstica e familiar. O espaço permanece aberto de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, tendo ainda duas profissionais que se revezam em sobreaviso, podendo realizar atendimentos 24 horas por dia, mesmo aos finais de semana e feriados.

Para o primeiro atendimento, não é necessário agendar horário. Chamado de acolhida, este momento inicial é de extrema importância para o atendimento das vítimas, proporcionando uma escuta qualificada e sem julgamentos, apresentando um ambiente seguro, profissional e, como o nome sugere, acolhedor. Neste momento, também se buscam identificar os tipos de violência sofridos pela vítima. Segundo a Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher pode ser classificada em cinco tipos: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

“Às vezes, as mulheres identificam um tipo de violência, mas vivem outro há muito tempo, e nem sabem que é uma violência, como é o caso da violência sexual dentro do casamento. Pela própria forma como se colocam esses papéis de gênero, elas acreditam que têm uma série de obrigações às quais devem corresponder, mas que na verdade são um abuso”, ressaltou Nogueira.

Para a realização da acolhida, uma escala é definida entre os profissionais da equipe. Assim, a mulher que chegar ao CAM sempre será atendida, seja por uma assistente social ou por uma psicóloga. Mas além de recepcionar as vítimas de violência, a acolhida tem a função de identificar o risco que a mulher está sofrendo.

“Muitas vezes, quando uma mulher busca o nosso atendimento, ela é motivada por uma violência que trouxe algum medo, como uma ameaça de morte, uma agressão física, o uso dos filhos como chantagem ou uma perseguição. E esse tipo de comportamento muitas vezes antecede o feminicídio. Então, neste ponto nós precisamos avaliar o risco para pensar em um plano de proteção para essa mulher. Verificamos se essa mulher está segura em casa, se precisa de uma medida protetiva, ou se ela já tem uma medida, mas o agressor está descumprindo. Tem situações que a mulher precisa até sair do município, realmente sumir do mapa”, contou a gerente.

Foto: Vivian Honorato / NCom

Em casos em que não é seguro retornar para sua residência, a mulher pode ser encaminhada diretamente para a Casa Abrigo Canto de Dália, local protegido e com endereço sigiloso. Nessas situações, a polícia é acionada para realizar posteriormente a coleta de pertences no local onde a vítima morava.

Durante a acolhida, também é preenchida uma ficha com informações tanto sobre a vítima quanto referentes ao autor da violência. No entanto, conforme Nogueira, este procedimento costuma ser deixado para o final, quando o caso já foi melhor entendido e a mulher se sente mais calma e confortável.

Às mulheres atendidas, o CAM também oferece acompanhamento nos setores de assistência social, psicologia e jurídico, com atendimentos individuais ou sequenciais, de acordo com o interesse de cada uma. Os atendimentos são geralmente quinzenais ou mensais, sendo prolongados pelo período que for necessário.

Os casos são geralmente atendidos por uma dupla ou trio de profissionais, de acordo com os setores em que a mulher deseja acompanhamento. Ainda assim, independentemente do caso, a autonomia da vítima é sempre preservada. Se ela não deseja registrar um Boletim de Ocorrência (B.O), por exemplo, essa decisão será respeitada.

Na área do Direito, uma assessora jurídica auxilia as vítimas fornecendo orientações legais, esclarecendo os direitos de cada indivíduo e retirando dúvidas sobre a legislação, podendo também consultar o andamento de processos.

“Durante uma separação, por exemplo, ela vai ajudar a entender que não é o marido quem decide que destino terão os filhos. Apesar de ele ser o pai, não está em uma situação de maior poder que a mãe. E, geralmente, um pai com processo por violência doméstica dificilmente ganhará a guarda unilateral das crianças. Além disso, a renda não é o que pesa mais em uma questão como essa”, explicou Nogueira.

Encaminhamentos e parcerias

A partir do momento em que a mulher atendida decide entrar na justiça contra seu agressor, seja para pedir a guarda dos filhos, pensão ou partilha de bens, entre outras medidas, ela será encaminhada ao Núcleo Maria da Penha (Numape). Esse programa é mantido pela Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior da Universidade Estadual de Londrina (UEL).  Prestando atendimento jurídico e psicológico gratuito a mulheres de baixa renda que residem em Londrina, o Numape auxilia na realização de divórcio, reconhecimento e dissolução de união estável, regularização de visitas e guarda de filhos, partilha de bens e outros trâmites legais. Além disso, também desenvolve trabalhos de conscientização.

Através desta parceria, estagiárias do curso de Direito do Numape iniciam os processos em nome das mulheres encaminhadas, acompanhando-as durante as audiências e lidando com os assuntos jurídicos necessários.

Foto: Emerson Dias / NCom

Por sua vez, os atendimentos das profissionais de assistência social e psicologia abordam as questões relacionadas ao fenômeno da violência, em seus aspectos sociais e culturais.

Através do serviço social, as mulheres interessadas são encaminhadas a programas sociais que podem contemplá-las, como o Bolsa Família, podendo também realizar inscrição na Companhia de Habitação de Londrina (Cohab), caso não possuam casa própria. Também é possível matricular uma criança pequena que dependa dessa mulher em alguma atividade no contraturno escolar, através de algum projeto ou, caso já tenha certa idade, na Guarda Mirim.

A assistência social auxilia também na conclusão da graduação, através da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Também incentiva as mulheres atendidas a adentrar o mercado de trabalho, mantendo parcerias com entidades como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Social do Comércio (Sesc) e o Clube das Mães Unidas, que oferecem cursos profissionalizantes. “Uma parceria que deu bastante certo foi com uma construtora que oferecia cursos de portaria e muitas mulheres, quando terminavam as atividades, já eram contratadas como porteiras”, contou Nogueira.

Enquanto isso, as psicólogas do Centro de Referência buscam lidar com as questões afetivas e emocionais, abordando a história de vida de cada uma das mulheres atendidas e atuando nas sequelas deixadas pela violência, como pânico, ansiedade ou ainda um sentimento de culpa.

Foto: Emerson Dias / NCom

Além de oferecer apoio às vítimas de violência, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher realiza ações preventivas, seguindo as diretrizes presentes no Plano Nacional para Enfrentamento da Violência contra a Mulher. Desde o ano passado, são realizadas rodas de conversa com grupos de mulheres, sendo que um assunto diferente é tratado em cada encontro, que acontece quinzenalmente. “Nesse ambiente coletivo, elas acabam se unindo e trocando contatos, sendo um momento positivo de apoio e confraternização”, relatou a gerente do CAM.

Além disso, quando convidado, o CAM realiza palestras, rodas de conversa e oficinas em diferentes espaços, entre outras atividades que levam à sociedade o diálogo quanto ao combate à violência doméstica e de gênero.

“Por três anos ou mais, no Instituto Federal do Paraná (IFPR), por exemplo, nós participamos de uma disciplina sobre saúde da mulher nas aulas do curso de Técnico em Enfermagem, sendo praticamente parte do corpo docente. Ao longo de todo o ano letivo, eram realizadas visitas técnicas ao CAM e nós dávamos algumas aulas lá”, informou a gerente do CAM.

Semanalmente, a equipe de profissionais do Centro também se reúne para debater sobre um caso específico que estejam atendendo, refletindo acerca de suas circunstâncias e buscando estratégias para lidar com a situação da melhor forma possível. Em casos mais extremos, a reunião pode ser realizada imediatamente, e não na sexta-feira, como é de costume.

Hoje, a equipe é composta por 17 pessoas. Além da gerente da unidade, a psicóloga Fernanda de Mello Nogueira, há mais duas psicólogas, quatro assistentes sociais, uma advogada e duas técnicas de gestão pública, que lidam com a área administrativa. Também integram a iniciativa dois guardas municipais, um motorista, duas estagiárias de serviço social, uma profissional de serviços gerais e a diretora, responsável tanto pelo Centro de Referência como pelo Abrigo. Algumas das profissionais possuem pós-graduação em violência doméstica, e o Município também oferta capacitações nessa área.

Foto: Vivian Honorato / NCom

Ainda que o CAM seja um órgão público de destaque no combate à violência doméstica e no acolhimento de suas vítimas, grande parte das mulheres atendidas não chegaram ao espaço por conta própria. Em muitos casos, outros serviços municipais funcionam como porta de entrada, encaminhando os casos até este setor. Entre esses, destaca-se a Delegacia da Mulher, onde as vítimas vão para a realização de um B.O., e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), já que grande parte das pessoas atendidas são encaminhadas pelos serviços de assistência social do município.

Também são feitos encaminhamentos pelos hospitais e postos de saúde, em casos de agressão em que a vítima precisou ser hospitalizada. Nestes casos, é realizada a chamada “busca ativa”, em que uma profissional responsável da equipe recebe a notificação sobre uma possível vítima, tendo a tarefa de localizá-la e realizar um primeiro contato para que essa mulher, caso deseje, possa ser atendida.

De janeiro a junho deste ano, o CAM atendeu 251 novos casos, sendo 106 decorrentes de busca ativa, sobretudo através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), modelo de ficha que deve ser preenchido pelos estabelecimentos ao perceber sinais de violência. Há ainda casos que são denunciados por terceiros, como um vizinho ou colega de trabalho, ou pelo sistema judiciário, recebendo ofícios da Vara da Infância e Juventude, Vara Maria da Penha, entre outras. Nessas situações, deve-se posteriormente notificar à Justiça sobre o sucesso da busca e o interesse da mulher em receber atendimento.

Responsável pela busca ativa, Cristina Rossi é assistente social no CAM há mais de 15 anos. Ela destaca a importância da existência de um órgão de proteção às mulheres, para auxiliar a minimizar os danos causados pela violência doméstica e coibir o feminicídio. “Muitas mulheres conseguem superar a situação de violência mais rapidamente, enquanto outras têm seu próprio tempo. Nós entendemos que tudo tem seu devido ciclo, ainda mais em um tema tão complexo quanto a violência doméstica. Através do trabalho psicossocial e jurídico que o CAM oferece, podemos ajudar no fortalecimento dessas mulheres”, disse.

Foto: Emerson Dias / NCom

Como denunciar casos de violência

Ao presenciar um caso de violência doméstica, além de entrar em contato com o CAM, é possível notificar as autoridades responsáveis por meio da Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180. Com sede em Brasília, o serviço encaminha os casos às entidades locais responsáveis. Em Londrina, é possível ainda realizar a denúncia através da Delegacia da Mulher, localizada na Rua Almirante Barroso, 107, com telefone (43) 3322-1633, ou ainda pela Delegacia Central de Flagrantes, que atua 24 horas, na Avenida Rio Branco, 1.062, no Jardim Agari.

Ao ser acionada, a polícia pode realizar um B.O. em caso de flagrante, ainda que seja uma situação difícil de acontecer devido à natureza dessa violência. Apesar disso, os oficiais de segurança, mesmo que não haja o flagrante, costumam confirmar com a possível vítima se ela não deseja ser acompanhada até a delegacia.

Em caso de violência doméstica, busque ajuda:

 

Centro de Referência de Atendimento À Mulher

Endereço: Avenida Santos Dumont, 408, bairro Boa Vista

Telefone: (43) 3378-0132

 

Delegacia da Mulher

Endereço: Rua Almirante Barroso, 107

Telefone: (43) 3322-1633

 

Central de Flagrantes

Endereço: Avenida Rio Branco, 1062, Jardim Agari.

Texto: Gabriel Navas, sob supervisão dos jornalistas do Núcleo de Comunicação da Prefeitura de Londrina.

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